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domingo, 5 de abril de 2020

Os milagres de Nottingham

O mais épico conto onde a cidade de Nottingham é citada, até hoje, inevitavelmente é Robin Hood. Aquele mesmo, cujo herói inglês é conhecido por roubar dos ricos para dar as pobres. Robin Hood tem várias versões, sendo a mais famosa e repassada aquela que conta sobre um homem chamado Robin De Locksley, que vivia em Nottingham durante o século XIII. Este, após servir ao lado do Rei Ricardo em uma grande Cruzada, retorna para casa. Ao chegar, encontra seu feudo devastado pela tirania dos regentes, além de leis abusivas, e a proibição da caça como sustento ao homem comum. Indignado, ele se recusa a aceitar a situação e é declarado fora da lei. Aproveitando seu conhecimento em cavalaria, arquearia e combate adquirido na guerra, ele une um grupo de foras da lei, e inicia um combate à tirania da nobreza, roubando dos ricos para dar aos pobres.


Viajando de volta para o século XXI e especificamente no futebol, a nobreza inglesa ainda concentra a riqueza e os títulos. Entre duques e condes, a realeza se apresenta como Manchester City, Manchester United, Liverpool, Chelsea, Arsenal e Tottenham. Todavia, tal qual há oito séculos e tal qual uma cruzada contemporânea, surge um novo herói em Nottingham, ironicamente mais velho e sábio que a nobreza estabelecida.

Um herói não solitário, precisamos admitir. Existiram outros heróis brilhantes anteriormente levando a desfragmentação desse establishment inglês. O Leicester, mesmo que com injeções financeiras, historicamente deve ser apontado: em 2016, ignorou quaisquer rótulos e conquistou a Premier League num épico dirigido por Claudio Ranieri e estrelado por Jamie Vardy.

A temporada 2021/2022 da Premier League enxergava um fenômeno em ascensão. O Notts County vinha de três acessos consecutivos, desde a quarta divisão, faturando em paralelo inclusive a FA no ano anterior. Mesmo assim, jamais se esperava que, num ambiente tão complexo e competitivo como a primeira divisão, um novo herói surgisse em período tão curto de tempo - breves seis anos do título dos Foxes. A penúltima surpresa havia sido em 1994/1995 com o histórico Blackburn de Alan Shearer.

Não foi uma cruzada centenária, como já fora. Não foi uma defesa de dez gol tomados, como já fora. Mas foi uma caminhada absolutamente incrível. No decorrer de 38 rodadas, o nobre mais hostil foi o Liverpool, que bravamente lutou contra os Magpies - inevitável, porém: a resiliência do novo herói foi o ponto-chave que levou o Notts County ao miraculoso título da Premier League.

Foram 89 pontos conquistados nesses jogos - 8 a mais que seu rival de Liverpool. 28 vitórias, 78 gols feitos e 22 gols tomados.

Todos os adversários da nobreza foram derrotados ao menos uma vez na competição, seja em casa ou fora. A vitória que levou matematicamente ao título, por exemplo, foi fora: 1x0 contra o City em pleno Etihad. Gol, na verdade um golaço, de Kyle Wooton (celebrando na imagem ao lado), um dos remanescentes da quarta divisão.

Além do título coletivo, individualmente várias premiações chegaram. Nketiah, na mais relevante delas, sagrou-se artilheiro da competição com 20 gols em 21 partidas disputadas - 2 a frente de Benzema, Kane e Gabriel Jesus. Ainda, Häland foi o principal garçom, com 13 passes para gol em 20 jogos - superando Eriksen em 4 assistências.

Agora, mesmo que com tantas conquistas até individuais de seus atletas, Castro - o líder deste conto romântico do futebol - novamente precisou tirar da cartola oportunidades de mercado e uma saída tática. Com o pequeno budget, fruto da arrecadação de arquibancada e produtos, não havia espaço para grandes contratações. Era um pedido do conselho a venda de duas estrelas para manter o equilíbrio financeiro, mas isso ia absolutamente contra o plano esportivo de Castro. E assim segurou com braço de ferro a estrutura de seu elenco.

Três contratações chegaram ao Meadow Lane, duas de enorme impacto: Vincent Kompany, veterano super campeão com o Manchester City. E Aaron Ramsey, galês forjado por Wenger no Arsenal.

Ambos os nomes deram corpo ao time-base campeão inglês: Schofield; Bird, Kompany e Cahill; Rose, Bjarnason, James, Fabregas / Ramsey e Saka; Nketiah e Haland. Um esquema pouco usual agora (3-5-2) mas que encaixou uma formação campeã, focando numa defesa sólida, mesmo que sacrificando taticamente nomes como James e Saka, cujos números foram bem inferiores em relação aos últimos anos.

Quem é Birkir Bjarnason?

Um viking legítimo, Bjarnason foi um dos nomes que fez história com a Islândia na Eurocopa de 2016 - e era um nome mais que necessário para fazer história novamente em Nottingham. Integrante do elenco desde a terceira divisão, o islandês assumiu a condição de titular curiosamente apenas na Premier League - mas afinal, de onde ele veio?

Bjarnason formou-se profissional justamente no Viking FK - na vizinha nórdica noruega. Foi um peregrino por Bélgica, Itália e Suiça até chegar ao Aston Villa, quando aterrissou no futebol inglês. Chamou a atenção da direção do Notts pelo sua polivalência no meio-campo - de primeiro-volante a meia-atacante - mas também pelo temperamento e caráter dentro do vestiário. De imediato, após uma transferência razoavelmente barata, Birkir teve um impacto dentro do elenco. Trouxe uma mentalidade agressiva a Rose, especialmente, ao passo que não deixava a desejar quando convocado a campo. Membro do rodízio por duas temporadas, na Premier League assumiu a titularidade por acaso: Ramsey lesionara-se gravemente e ele era o único meia à disposição entre os não-convocados para o jogo seguinte. De última hora, foi colocado como titular e sua atuação teve um gol e uma assistência. Daí em diante, não saiu mais do time. Os números discretos na temporada - 3 gols e 3 assistências em 37 partidas - não descrevem o quão importante foi para conquista o título.

Até então, o maior feito particular de Bjarnason fora o gol do empate diante Portugal, na Eurocopa, na partida que terminaria em 1x1. Por "culpa" deste gol, a Islândia terminou em segundo lugar no grupo e avançou até a épica quartas-de-final, onde Bjarnason ainda faria o segundo gol diante da França, na derrota que os eliminaria (5x2).

Castro descreve seu atleta: "Birkir teve impacto imediato no Notts County. Já havíamos trabalhado juntos em Glasgow e ele era um dos meus caras de confiança. Quando vim para cá, ele disse que uma ligação nos separava. Assim que tive a chance, eu o trouxe. A mentalidade que ele traz para os mais novos e a versatilidade que ele dá pra minha escalação é impressionante. Vejam, ele foi o segundo volante durante toda a campanha do título. Mesmo assim, atuou como meia avançado em alguns jogos e, nas copas, como lateral-esquerdo e zagueiro central. Ele é completo, um jogador de futebol total. Agradeço termos conquistado tudo isso com ele aqui."

Além de Bjarnason, uma história que rodeia e traz nostalgia é a terceira contratação feita pela equipe - e não citada até aqui: Kasper Schmeichel. Na temporada de 2009/2010, prometeu-se uma grande revolução no Notts - nomes como Kasper e Sol Campbell além do treinador Sven-Goram Erikson. O time foi campeão da quarta divisão e o goleiro, eleito o melhor jogador da competição. Após o fim do torneio, impossibilitado de sustentar seus ganhos, o Notts liberou o atleta. 12 anos depois, Schmeichel foi propositalmente contratado por dois motivos: o primeiro, reescrever os capítulos de uma história que foi interrompida em 2010; e segundo, trazer os ares de campeão de Leicester e provar, mais uma vez, a roupa de Robin Hood.

Não obstante que o título da Liga seja o ponto nevrálgico deste ano, o milagre não parou por aí. Mesmo que sem os grandes gigantes europeus, a Liga Europa é palco de incríveis e tradicionais jogos. Entre outros, as semifinais foram de tirar o fôlego: Notts County x Liverpool. A primeira perna, em Nottingham, terminou num frustrante 0x0. A segunda, nas terra dos Beatles, também. Assim, a partida caminhou para a prorrogação, onde nitidamente imperou o medo de ambas da eliminação. A diferença esteve em Adama Traoré, que saindo do banco como quarta substituição - nova regra da FIFA, arrancou em velocidade e bateu o inseguro goleiro Karius. Já a final aconteceu contra a clássica Fiorentina, capitaneada pelo jovem Chiesa. A Viola saiu na frente após escanteio e desvio em Bjarnason, aos 45' da primeira etapa. Os Magpies voltaram com a troca de Fabregas por Adama, que decidira na fase anterior do torneio. Seguindo predestinado, o espanhol empatou a partida aos 50' após rápido contra-ataque. A partida se arrastou tensa e sem produção do forte ataque inglês; isso até em mais um contra-ataque, Adama carregar a bola por mais de 50 jardas e deixar para Daniel James empurrar aos fundos da rede quase ao som do apito final. 2x1, a virada e o primeiro título internacional da história de 157 anos do Notts County. E aqui, invertendo os papéis da Premier League, Häland foi o principal artilheiro do torneio (10 gols) e Nketiah, o assistente (7 passes para gol).

Voltando ao futebol local, as taças internas também foram arduamente disputadas. Se o troféu da FA perdurara no ano anterior na estante de Nottingham, nesta temporada o doce foi tirado mais uma vez pelo Watford - novamente pelas semifinais, mas agora por pênaltis. Por outro lado, na Carabao Cup, título após vitória por 1x0 diante do Everton, em partida burocrática e gol solitário de Erling Häland.

A quarta temporada de Castro no comando do Notts County pode ser classificada como a celebração de um milagre. O que o futebol inglês presenciou fora um retorno planejado mas nem caracterizado nos melhores sonhos. Um título da Premier League era desaforo utópico do mais otimista, era questionar praticamente o bom senso eticamente estabelecido, mais que isso: todo o establishment constituído por anos de domínio da nobreza. O título europeu, em igual choque distribuído ao continente inteiro.

Assim, se o célebre Eduardo Galeano profetiza o seguinte: "(...) a utopia está lá no horizonte. Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar (...)", a utopia agora se chama UEFA Champions League. E nós? Continuaremos caminhando em direção à utopia!

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